6 de dezembro de 2014

Fontes: A Encruzilhada da Memória (Novembro de 1807)


Palácio da Ajuda (século XIX)

“Vá, Sr. Lecor, até ao inferno, se for necessario, porque quero saber onde estão os Franceses: marcham, e não quero que nos surpreendam.”


Tendo sido escrita, da pena própria ou por instrução de D. Leonor de Almeida, 4.ª marquesa de Alorna (1750-1839), o certo é que o autor da Memória Justificativa do Marquês de Alorna quase de certeza recebeu a parte do próprio, então tenente coronel, Carlos Frederico Lecor, seja direta ou indiretamente. São uma fonte que ajudam a aclarar os momentos históricos da última semana de novembro de 1807, enquanto o Corpo de Observação da Gironda materializa aquela que virá a ser conhecida como Primeira Invasão Francesa, entrando em Portugal por Segura e Salvaterra do Extremo, a partir do dia 19. Alguns elementos não aparecem referenciados em mais parte alguma e mesmo considerando algum esforço panegírico ou hiperbólico por parte da autora da Memória, não posso deixar de o tomar como extremamente relevante. Apesar de sempre próximo da família desde, pelo menos, 1802, e tendo visitando D. Leonor a Londres na primavera de 1808, em 1815, em Lisboa, Lecor, tenente general da Divisão de Voluntários Reais, é frequente visita para jantar na casa da marquesa; aí decerto, a história terá sido contada com mais vagar, mais minúcia.

Há, neste interessante opúsculo, algumas discrepâncias em locais e datas, nomeadamente o dia em que o Conselho de Estado reuniu pela última vez antes do embarque para o Brasil (24 de novembro, e não 25), ou o destino de Lecor depois de ir a casa do Secretário de Estado D. António de Araújo (o Príncipe estava no palácio da Ajuda, e não Mafra). 
Outras fontes apontam a zona entre Abrantes e Sardoal como o sítio onde Lecor observa pela primeira vez os franceses, sendo que esta Memória o coloca perto de Castelo Branco na ocasião. A Memória diz que foi a 24 de novembro, mas foi a 23, pois, segundo nos informa o Marquês de Fronteira, Lecor cavalgou em 30 horas, “à rédea solta”, para Lisboa, sendo que o Conselho de Estado de 24 realiza-se com base no relatório oral do dedicado ajudante de ordens.

Os quatro correios que a autora da Memória atribui como sendo destacados a Carlos Frederico Lecor, dois deles são localizados, na forma de cartas, em D. João VI Príncipe e Rei, de Angelo Pereira. Observando o progresso dos franceses, Lecor envia um desses correios com carta de Santarém, a 26 de novembro, e outro do Cartaxo, no dia seguinte, esta última missiva entregue já a Corte se achava embarcada na esquadra que partiria, dias depois, para o Brasil. No dia 29 ou 30, já os franceses em Sacavém e a horas de entrar em Lisboa, Lecor retorna a Lisboa e vai a Benfica, onde o jovem marquês de Fronteira D. José o descreve vividamente, “cheio de poeira e lama, com o uniforme em desalinho, porque havia oito ou dez dias que se não despia, e triste, respondendo com difficuldade às perguntas que minhas tias lhe faziam”.

Mais observações podem ser feitas, como a noção que foi o Marquês de Alorna que ordenou que Lecor notificasse os magistrados que fizessem desviar pontes, de forma a atrasar os franceses, sem ter instruções de Lisboa para isso, mas julgo que farei melhor deixar falar o excerto da Memória que hoje aqui trago, para que o caro Leitor possa fazer a sua própria leitura.

Excerto: Memória Justificativa do Marquez d’Alorna, Hamburgo, Tip. F. H. Nestler, 1823.

Abrantes hoje (foto: Manuel Anastácio)
[p.5] « [...] é justo passar mais rapidamente para o momento decisivo, em que o Princepe Regente, El Rey, que Deus Guarde, houvéra certamente succumbido victima dos Francezes, a quem tinha impedido a entrada pelo Alem-Tejo, onde elle Marquez governava no anno de 1807, que desviando-se tentarião outra varéda, chamou o seu Ajudante, o Coronel Carlos Frederico Lecor, e lhe disse ertas [sic] notaveis palavras: “Vá, Sr. Lecor, até ao inferno, se fôr necessario, porque quéro saber onde estão os Francezes: marchão, e não quéro que nos surprehendão.” Acrescentou a isto, que se o dito os encontrasse, não parasse para vir informa-lo, mas que á rédea solta fôsse avisar S. A. R., então Princepe Regente, hoje El Rey que Deus Guarde, tendo cuidado ao mesmo tempo de recomendar aos Magistrados, que destruissem todas as pontes, a fim de retardar a marcha do inimigo.
No dia 24 de Novembro, o Coronel Lecor, chegando perto de Castello Branco, encontrou paisanos assustados e fugitivos: tomou consigo um destes paisanos, e se fez conduzir ao lugar aonde elles dizião que tinhão visto os Francezes: na distancia de menos de um quarto de légoa, avistou o Corpo, que avançava em grande desordem; voltou a rédea, e no dia 25 de Novembro pela manhan, chegou á Casa do Secretario d’Estado Antonio d’Araújo, que // [p.6] immediatamente o mandou para Mafra, onde S. A. R. Se achava. O Coronel Lecor dèo parte ao Princepe das Ordens, que tinha recebido do Marquez d’Alorna, do encontro dos Francezes, e do receio bem fundado, de que dentro de 30 horas chegassem a Lisboa.
Juntou-se logo Concélho d’Estado; o Coronel Lecor ahi foi chamdo para dar conta do que sabia. S. A. R. lhe ordenou (*) que voltasse acompanhado de quatro Correios que virião, uns depois dos outros, informa-lo dos progréssos que fazia o Exército Francez desde que o avistasse, notando a hora, e o lugar em que se achava, e voltasse o Coronel Lecor com o ultimo correio; o que elle fez [...].

(*) Estas ordens, que o Coronel Lecor recebéo por escripto, estão provavelmente registados na Secretaria d’Estado; e as ordens que se entregárão ao Coronel, passados muitos mezes lhas pedio o Principal Sousa, para gloria, dizia elle, do Marquez d’Alorna, que tanto tinha contribuido para salvar El Rey e a Familia Real; gloria que lhe competia na historia da restauração (que tinha encommendado ao Dr. José Accursio das Neves. [...] »


Referências

- S/Autor, Memória Justificativa do Marquez d’Alorna, Hamburgo, Tip. F. H. Nestler, 1823.

- BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas, Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926;
- PEREIRA, Angelo, D. João VII Príncipe e Rei: A Retirada da Família Real para o Brasil, 1807, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1953.



VER TAMBÉM

A Lenda da Ponte sobre o Zêzere [Parte I] [Parte II]

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